“Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando,
foi justamente em um sonho que ele me falou” Raul Seixas
O Nicolau Chaud fez um questionamento no grupo de Analise do Comportamento do Facebook sobre os sonhos na clínica e, como já havia conversado sobre este tema com ele tempos atrás, resolvi compartilhar a minha experiência pessoal sobre o tema.
Já adianto que este é um relato pessoal sobre o assunto, portanto não pode ser generalizado para todos os casos sem um estudo aprofundado sobre o tema. Contudo, acredito que esta pode trazer dados que ajudarão os psicólogos clínicos na compreensão dos sonhos.
Relato do sonho e como este influenciou a minha vida
Ao chegar em casa em um final de tarde após um temporal, mas já com o tempo limpo, observo um bicho na grama próximo a roseira. Ao perguntar para a babá do que se tratava, ela me disse que era um filhote de passarinho. “Mas ele não tem penas”, indaguei. E ela me explicou que eles nasciam assim e só mais tarde ganhavam penas e muito depois poderiam voar. Perguntei o que aconteceria com ele e ela me disse que, naquelas condições, ele morreria.
Aquilo me impressionou. Pela primeira vez, aos seis anos de idade, havia me deparado de forma tão explicita com a fragilidade da vida.
Naquela noite eu tive um pesadelo. Não lembro com clareza deste primeiro sonho, mas ele estava ligado a cena da tarde. Acordei assustada. Minha mãe disse para eu ir dormir no quarto dela e de meu pai. Isto não era pouca coisa. Meus pais trabalhavam muito, ficavam muito tempo fora de casa, e tenho duas irmãs mais novas. Atenção era um artigo disputado.
Sendo assim, aquela concessão não era um acontecimento rotineiro; ela provavelmente foi a maior distinção que eu recebia em muito tempo.
A cena se repetiu mais algumas vezes ao longo daquele ano. Os pesadelos não eram diários, mas aconteciam com frequência, e foram se tornando cada vez mais elaborados e assustadores.
Certo dia a minha mãe não permitiu mais que eu fosse para o quarto dela quando estivesse com medo. Não lembro exatamente como foi ou o que ela disse, mas o recado era que eu deveria me virar sozinha com os pesadelos sem incomodar as minhas irmãs que dormiam no mesmo quarto.
Se não me engano ela se irritou porque, além dos meus pesadelos frequentes que atrapalhavam o sono dela, minhas irmãs também passaram a relatar sentirem medo para poderem ir dormir no quarto de minha mãe.
O problema é que os pesadelos não cessaram com a proibição. Continuei a tê-los. Era insuportável ficar na cama. Frequentemente me levantava e ficava esperando passar o medo para poder me deitar novamente. Os pesadelos continuaram pela infância afora e chegaram a adolescência.
Durante a adolescência ganhei um quarto só para mim. Nas noites de pesadelos já era possível ligar a luz do quarto, arrumar novamente a cama, até me assegurar de que não haviam passarinhos mortos entre as cobertas. As vezes, minha mãe percebia as luzes acesas e perguntava pela manhã se eu tinha acordado a noite e eu confessava que tivera um pesadelo. Nestas conversas, não revela o conteúdo, afinal, na adolescência eu já tinha noção do ridículo que é sentir medo de pássaros.
Obviamente meu medo de pássaros (que descobri neste exato momento que tem um nome próprio: ornitofobia) não se restringia aos pesadelos. Apesar de adorar assistir documentários, nunca assistia os que eram sobre pássaros. Não gostava de ver fotos de pássaros em revistas e livros, sobretudo os pequenos. Ver um pássaro morto na rua era sempre um susto grande e garantia de desvios no caminho pelos próximos dias. E até meu futuro profissional foi influenciado por este medo: o principal motivo de eu ter desistido de cursar a faculdade de Agronomia, profissão do meu pai, foi o medo de achar pássaros mortos no meio da lavoura. É ridículo e é muito triste. Por sorte, gosto do que faço hoje.
Qual era o meu maior medo? Meu maior medo ao ver um pássaro era que ele pudesse desencadear um pesadelo durante a noite. A minha evitação dos animais era pelo medo de sentir medo.
Quando fiz dezessete anos e entrei no curso de psicologia fui morar sozinha em outra cidade. Os sonhos diminuíram de frequência. Mas não se extinguiram. Hoje sei,depois de muita observação, que eles sempre apareciam – e aparecem – quando estou passando por uma fase difícil. Quando descobri isso, eles se tornaram mais fáceis de lidar.
Com o tempo aprendi a me expor aos estímulos que me assustavam. Agora consigo passar ao lado de pássaros mortos na rua sem sobressaltos ou medo, como aconteceu hoje. Consigo ver figuras de pássaros, vê-los em zoológicos e até passar ao lado de pombos na rua sem problemas, apesar de estas nem sempre serem situações confortáveis elas não me impedem de fazer nada.
Mesmo com os pesadelos, aprendi a me acalmar mais rapidamente para voltar a dormir.
“Eu tive um sonho ruim e acordei chorando. Por isso eu te liguei.”
Herbert Vianna
Análise dos Pesadelos
(Para os analistas do comportamento mais experientes essa parte do texto é desnecessária, tenho certeza de que vocês já conseguiram entender as deixas que coloquei no próprio relato.)
Por fim, os psicanalistas estavam certos: é tudo culpa da mãe.
O primeiro pesadelo que apareceu foi, aparentemente, uma reação normal a um estímulo especialmente forte que aconteceu durante o dia. Isto é comum sobretudo em crianças. Até mesmo rir demais durante o dia pode gerar dificuldades em dormir nas crianças pequenas.
O que tornou esse pesadelos diferente de outros, tantos outros, que tive na infância foi a forma como a minha mãe reagiu a ele. Pela frequência posterior dos pesadelos com pássaros, posso afirmar que, ao me acolher e permitir que eu dormisse no seu quarto, ela reforçou o meu comportamento de relatar sentir medo e aumentou a probabilidade futura de ocorrência dos pesadelos com pássaros.
Com o fortalecimento do comportamento ele aumentou em frequência e intensidade: os pesadelos além de acontecerem outras vezes, se tornaram cada vez mais assustadores. Como as imagens dos pássaros passaram a ser emparelhadas com medo, logo estava sentindo medo de pássaros em outros contextos que não apenas nos sonhos.
Duas coisas interessantes aqui: 1. a modelagem de um sonho; 2. a generalização de algo que acontecia em sonho para outros contextos.
Nenhuma mágica. Comportamento operante clássico.
Por outro lado, os pesadelos também foram emparelhados com o acolhimento. Isso explica porque, mais tarde, ao passar por momentos difíceis, voltaria a sonhar com pássaros. E de alguma forma, por muitos anos as perguntas esporádicas da minha mãe sobre eu ter acordado a noite, podem ter tido função reforçadora o que contribuiu para a manutenção dos sonhos por tantos anos.
Temos ainda um exemplo de modelação, já que as minhas irmãs passaram a relatar pesadelos ao observar o meu comportamento e de minha mãe.
“Passarim quis pousar, não deu, voou
Porque o tiro partiu mas não pegou
Passarinho, me conta, então me diz:
Por que que eu também não fui feliz?
Me diz o que eu faço da paixão?
Que me devora o coração…”
Tom Jobim
Conclusão
Os sonhos foram tratados por boa parte das sociedades humanas como um fenômeno importante. Na Grécia Antiga, por exemplo, “os poetas da Era Homérica, c. 850 a.C., tratam os sonhos como revelações sobrenaturais concedidas pelos deuses” (ROPP, 2000). Algumas tribos das Américas possuíam até mesmo um Filtro de Sonhos.
“Segundo demonstram algumas linhas do Xamanismo, mesmo de posse do Filtro dos Sonhos, teremos pesadelos, pois eles nos mostram visões de diversos aprendizados que devemos nos atentar. Acredita-se que o filtro impedirá que energias indesejadas interfiram no processo natural e particular de sonhar.”
(Fonte: http://naturezadivina.org.br/textos/cultura-indigena/o-filtro-dos-sonhos/ )
Já no nosso tempo, Freud, juntamente com Breuer, trouxe os sonhos de volta a pauta com o lançamento do primeiro livro de psicanalise em 1900: A interpretação dos Sonhos. A partir disso, passou-se a tentar compreender o conteúdo daquilo que era sonhado por meio de metódos científicos.
Por outro lado, a fisiologia do sono avançou e hoje já sabemos um bocado de como a atividade onírica acontece no organismo. Segundo Varella
“Para o cérebro não faz diferença se é sonho ou realidade. Por isso as recordações das experiências que registramos dormindo são tão vivas. Se analisarmos as ondas cerebrais provocadas pelo sonho, veremos que suas características são semelhantes às dos momentos de vigília. Às vezes, porém, sua intensidade é tanta que para evitar uma reação que nos torne capazes de desferir um soco num inimigo hipotético, no exato instante em que começamos a sonhar, o tronco cerebral é desligado a fim de impedir que os neurônios conduzam estímulos motores. Dessa forma, na fase onírica, a atividade cerebral é máxima e a motora é mínima. Com exceção dos olhos que se movimentam com rapidez, praticamente ficamos imóveis. Isso ocorre durante o sono REM (Rapid Eyes Movement). Se despertarmos nesse período, é provável que nos recordemos com detalhes do sonho que estávamos tendo.”
(Fonte: http://drauziovarella.com.br/letras/s/sonhos/ )
Pesadelo é algo que pode ser considerado aversivo, pois além de eliciar respondentes ligados ao medo e outros sentimentos desagradáveis, também priva quem os tem de sono. E como acontece em um momento em que estamos frágeis e não temos consciência do que provoca ou controla aquilo, o pesadelo se torna absolutamente assustador.
Pela nossa fisiologia, nossos sonhos podem parecer algo real e pela nossa cultura, tendemos a dar importância à aquilo que sonhamos. De alguma forma os sonhos podem ajudar na clinica sobretudo quando o assunto é autoconhecimento. Contudo é necessário ficar atento, pois nem sempre o conteúdo é o mais importante no sonho.
Neste meu relato fica claro que o conteúdo não era o principal e sim a função que o comportamento de relatar pesadelos produziu e que, por consequência, selecionou o conteúdo do pesadelo. Por isso, os medos fóbicos tendem a ser considerados irracionais: não é o objeto em si que nos provoca medo, são as contingências de aprendizagem que nos levaram a apresentar comportamentos de esquiva naquela situação.
Os sonhos não sumiram, mas hoje acontecem em baixa frequência e, quando ocorrem, consigo lidar bem com eles. Apenas para fechar o texto, vou elencar algumas coisas que me ajudaram a lidar com esta fobia:
1. Esse mar de acasos chamado vida;
2. Ter estudado análise do comportamento;
3. Ter feito psicoterapia, que apesar de não tratarem diretamente disso – não lembro de ter contato para as minhas psicologas sobre o assunto – estas me ajudaram a aumentar o repertório de enfrentamento de problemas o que ajudou (e ajuda) a lidar melhor com os “momentos difíceis” em que os sonhos apareciam (… aparecem).
A meu favor, declaro que não tenho medo de baratas.
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P.S.: Devido a alguns questionamentos resolvi fazer um quadro com a análise funcional do caso. É aproximada, pois como um comportamento complexo, tem mais nuances do que isso. É uma cadeia comportamental. O reforço liberado após a última etapa do elo, muito provavelmente teve valor reforçador sobre o resto da cadeia. Por isso o reforço liberado após o relato de ter pesadelos fortaleceu também aquilo que o antecedeu: o comportamento de sonhar com pássaros.
P.S.2: Por ironia do destino, Ortolan é o nome de um pequeno pássaro na Fraça, sendo apreciado como uma iguaria culinária com direito a um ritual específico para ser comido. Obviamente, não é algo que abre o meu apetite.
http://www.youtube.com/watch?v=qvPJ0hRA6x4